sexta-feira, 3 de junho de 2016

CNT004. Fuga na noite

O conto que hoje trazemos foi publicado no fascículo 325 do Cavaleiro Andante. Nele, faz-se a apologia do preso que tem um bom comportamento e que deseja colher os benefícios de permanecer sossegadamente na prisão. Não entendemos como o sr. Muller, arauto dos bons princípios, permitiu uma mensagem destas numa revista que tanto influenciava os jovens portugueses. Estes contos do Cavaleiro Andante não são assinados na sua maioria, pertencendo possivelmente a autores portugueses. O mesmo acontece às ilustrações que os acompanhavam. Encontrámos algumas de José Ruy, mas a presente não parece do grande mestre embora sugira o traço de Fernando Bento.



Nos tempos heroicos da pradaria, houve em El Paso um bom sheriff. Firme mas bondoso, sabia fazer respeitar a Lei, e toda a gente o estimava, mesmo aqueles que às vezes prendia, quando as circunstâncias o exigiam.

A prisão de El Paso era feita à semelhança do sheriff: acolhedora, hospitaleira. Sentia-se a gente bem ali. Era pouco frequentada. Durante mais de cinco anos tivera por único ocupante, de tempos a tempos, um tal Beebe, no fundo bom rapaz, mas com um fraco pelo whisky. Quando tinha bebido, Beebe não sabia o que fazia e injuriava copiosamente as pessoas gradas da região.

Ora aconteceu que Beebe prometeu emendar-se. Ao fim de seis meses, como tivesse cumprido a sua palavra, o bom sheriff empregou-o como carcereiro, porque Beebe estava sem trabalho. Era uma ocupação leve, e Beebe desempenhava-se dela facilmente.
Alguns meses depois teve à sua guarda três larápios: Alvin, Poyen e Leslie, acusados de terem feito batota ao jogo. Em El Paso havia multo quem fizesse batota. Mas aqueles três tinham tido a pouca sorte de a fazer com o maior proprietário da região, pessoa muito influente. O homem queixou-se e o bom sheriff fora obrigado a prendê-los.

Uma noite, Leslie tirou da algibeira uma nota do Banco e estendeu-a a Beebe, que lhe levava a sopa, dizendo:
— Estamos aborrecidos, Beebe! Queres ter a bondade de nos comprar uma garrafa?
— É proibido!
— Vamos, Beebe — continuou docemente Leslie — o regulamento tolera algumas guloseimas para o prisioneiro que paga.
— Mas álcool não!
— Ora! Guloseimas para nós... que haviam de ser ?
Era uma pergunta embaraçosa. Beebe começava a dar sinais de fraqueza. Leslie tornou-se persuasivo, tanto ou tão pouco, que Beebe pegou no dinheiro e voltou um pouco mais tarde com a preciosa garrafa.
Repartiu-se o conteúdo. Beebe teve um copo. Devia ter sido um copo bem cheio, porque adormeceu e sonhou que o sheriff o tinha prendido e que um homem chamado Leslie era seu carcereiro.
— Quero ir-me embora! — gemia, durante o sono — Não fiz mal nenhum!
— É verdade! — disse Leslie —Cá por mim, podes ir.
Beebe acordou e reconheceu Leslie. Exclamou:
— Dizes isso, tu que és meu carcereiro, mas não és capaz de fazer um gesto para me libertar...
— Enganas-te, Beebe! Sou muito teu amigo! Vou abrir-te a porta.
— És muito bondoso! — choramingou Beebe.
Leslie abriu a porta com a chave que tirara a Beebe. Em seguida soltou Alvin e Poyen. E lá se foram os quatro, enquanto o sheriff dormia. O ar fresco da noite reanimou Beebe que perguntou:
— Onde vamos?
-- Onde quiseres! — respondeu Leslie, conciliador — Com um frio destes, não quero deixar-te ir só...
— E aqueles dois, quem são? — interrogou Beebe, vendo Alvin e Poyen.
— Amigos!
O frio era tanto que tremiam. Saíram rapidamente da cidade e meteram por um atalho da montanha. Fustigado pelo vento, Beebe recuperou a compreensão das coisas.
— Pregaram-me a partida! – disse ele -- Vamos... voltem para trás!
— Nem pensar nisso!
— O que fizeram é muito feio!
— Então não querias ser livre? Pronto, já o és! Esta explicação tinha sua razão de ser.
Beebe começou a pensar nela. Pensou que estava desonrado. Agora não mais poderia aparecer na cidade. O melhor ainda seria sair da região com os outros.

 A tempestade redobrou de violência. Era meia-noite quando chegaram ao alto da colina. Os quatro homens avançavam curvados, lutando contra o vento. Tinham o nariz vermelho, as orelhas geladas, os pés martirizados. Pensavam na tepidez da prisão, mas era um pensamento que a sua altivez lhes proibia de exprimir em voz alta. Em volta deles os pinheiros gemiam. Ao longe ouvia-se o uivo lamentoso de um animal perante a morte.
Leslie caiu. Ajudaram-no a levantar. Caminharam mais uma légua e, por fim, chegaram à cabana de um caçador.
— Refugiemo-nos ali! — disse Leslie. Entraram. A cabana estava abandonada. Havia uma mesa, bancos, uma cama velha e, ao fundo, uma lareira. Queimaram a mesa e os bancos, e um doce calor se espalhou por todo o compartimento. Esgotados, adormeceram.
Mas a chaminé estava cheia de folhas secas. O fogo pegou ao madeiramento e, horas depois, toda a cabana ardia. Beebe foi o primeiro a acordar e despertou os outros. Fugiram.
Entretanto, a tempestade acalmara e o frio era muito menos cortante. As árvores, que o vento já não sacudia, tinham retomado a sua forma vertical. Reinava por toda a floresta essa enganadora doçura que precede a neve.
— Na prisão de El Paso havia boas camas e bons cobertores...
O desengonçado Leslie murmurava estas palavras sem dar por isso. Alvin acrescentou:
— E a sopa era boa...
Por seu lado, Poyen disse:
— Sempre tínhamos um tecto...
Tinham percorrido mais de uma milha, quando repararam que, de comum acordo, haviam voltado para El Paso. Chegaram uma hora antes de nascer o dia.
O bom sheriff dormia ainda. Leslie, Alvin e Poyen entraram e deitaram-se muito ajuizadamente, felizes por se encontrarem de novo em casa. Beebe entalou-lhes a roupa com ternura, e desejou-lhes boa noite. Pegou de novo na chave e fechou silenciosamente a grade sobre os três amigos, para não acordar o bom sheriff.
E os dias que se seguiram foram para todos dias felizes, enquanto a tempestade uivava sem cessar sobre as montanhas cobertas de neve.


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