Apresentamos hoje um conto de Raul Correia, ilustrado por M.Gustavo (Carlos Alberto Santos) e extraído da Série de Ouro do Jornal do Cuto. O velho Dan Mac Kay recorda um feito de juventude perante aquela que seria a companheira para toda a vida.
"A porta tinha ficado aberta. Não sei se já lhe disse que era um tempo assim como este, quase de Primavera. E, de repente, um vulto tapou a abertura, intercetando a luz. Olhámos ao mesmo tempo. Era um urso, um urso castanho e enorme, erguido nas patas traseiras. Preparava-se para entrar. Não me lembro já o que pensei e é provável que não tivesse pensado em coisa nenhuma. O certo foi que pulei para a carabina, encostei-a ao ombro e disparei as duas balas no focinho da fera. Aquilo foi milagre, porque eu tinha medo que chegava para me impedir de fazer pontaria. Mas o urso oscilou nas patas, esfregou duas vezes o focinho como se quisesse arrancar de lá as balas e caiu atravessado na porta".
"Esquecia-me de lhes dizer que a tal menina se chamava Mary e que é a mesma que encheu estes copos, quando vocês chegaram. À vossa saúde, rapazes".
E Dan Mackay levou o copo à boca. Mas, antes de beber, os seus olhos encontraram-se com os da tia Mary, e sorriram, ambos. Então Paul Gerry levantou também o seu copo e bradou com o seu modo alegre:
— À saúde da tia Mary. Pela primeira pele de Dan Mackay I Hip... hip... hip...
Embora não estivéssemos ainda na Primavera, havia uns bons pares de dias que a superfície do Winnipeg já não oferecia a solidez necessária para que um trenó equipado pudesse passar sem perigo. Eram uns dias de descanso em perspetiva e, depois de um rude inverno como tinha sido aquele, o caso não era de molde a desagradar-nos.
De resto, para cada um dos que compunham o nosso grupo, a estação não tinha sido das piores. A colheita de peles era na verdade boa, tanto em quantidade como em qualidade, e eu, pela minha parte, tinha no meu lote uma meia dúzia de raposas que não ficariam mal em nenhuma coleção. Isto quer dizer que havia boa disposição em geral.
Esquecidos os trabalhos e os perigos de vários meses, tranquilos os espíritos quanto ao futuro mais próximo, todos nós apenas pensámos em passar o melhor possível aquele tempo de descanso. Cada um, segundo a sua maneira de ser e os seus gostos, procurava, pois, unicamente, divertir-se.
Naquela noite, o grupo habitual tinha-se reunido em casa de Dan MacKay. Eramos três, o desse grupo: Paul Garry, um francês do sul, falador e homem de bons ditos, o inglês Jack Allison, e este vosso criado.
A barulheira infernal do único "bar" de Rossville fazia-nos dores de cabeça. Quanto às cartas, mal surgia um baralho, era sabido que Allison puxava pelo cachimbo, acendia e começava a pensar noutra coisa. Em mim e no francês o feito do jogo era ainda melhor: em meio de um lance decisivo tinham de nos acordar, porque o sono se apoderava de nós.
Para isto, e pelo facto de ter-mos tido a boa sorte de cair nas graças do velho Dan MacKay, todas as noites nos reunimos em casa dele. A mulher, a bondosa tia Mary, mal nos via chegar, punha em cima da mesa uma garrafa de velho "brandy" e quatro copos e ia-se sentar ao pé da luz, com as suas agulhas de "tricot" e os seus novelos de lã. E para ali estávamos, até à hora de recolher, contando histórias e enchendo a casa com o fumo dos cachimbos. O velho Dan sorria de boa vontade com as pilhérias de Garrah e escutava com agrado visível as narrativas de Allisson, que viajante infatigável, que tinha sempre uma história diferente para contar, passada em algum canto perdido do vasto mundo.
Ora, naquela noite, as peles e as caçadas constituíam o assunto da conversa. Allison descrevera já com colorido e julgo que com verdade, os trabalhos que lhe dera certa vez um tigre de pele magnífica atrás do qual ele tinha percorrido toda a região que medeia entre Indore e Bhopal, na velha Índia. E, a certa altura, não sei já qual de nós se lembrou de pedir ao velho Mac-Kay que nos contasse a sua primeira caçada.
Dan MacKay tinha sido, nos seus tempos, o melhor caçador de todo o Winnipeg. Ao escutar o pedido, a sua face ainda lisa e corada abriu-se num sorriso que fez estremecer os longos fios de prata das barbas patriarcais.
— Ouves, Mary? Estes amigos querem que lhes conte a minha primeira caçada. Que achas?
Ela levantou a cabeça e interrompeu a tarefa de contar as malhas do "tricot", para responder com um sorriso bondoso:
— Pois conta, Dan.
E ele contou.
O velho Dan MacKay encheu pausadamente o cachimbo, procurou uma posição mais cómoda na cadeira, e começou :
— Foi no ano de 1870, por um tempo assim como este. Eu ia nos meus doze anos e, apesar dos constantes pedidos que fazia a meu pai, ainda não tinha conseguido que ele me deixasse acompanhá-lo nas suas expedições. Entretanto, para me consolar e para que eu fosse fazendo a "mão", ele tinha-me dado de presente uma bela carabina de dois canos, para chumbo e bala, que eu não me fartava de admirar e de polir com todos os trapos que apanhava. Da primeira vez que saí com a arma, carregada com balas e de canos reluzentes como prata, não resisti à tentação de a ir mostrar a uma certa menina, dois anos mais nova do que eu, e que morava a pouco mais de duas milhas da nossa barraca.
Nesta altura da narrativa, Dan MacKay interrompeu-se para acender o cachimbo que se tinha apagado. Eu olhei para a tia Mary que seguia também a narrativa, e vi que o seu sorriso bondoso tinha uma expressão mais jovem, na sua face enrugada.
— Ora — continuou o velho Dan — na ocasião em que cheguei a casa da tal menina de que falei, fui achá-la, de avental posto e braços brancos de farinha, a preparar a massa de uns certos bolos doirados de que ela já então tinha o segredo. O pai fazia anos nesse dia e ela, enquanto ele andava por fora, estava a preparar-lhe a surpresa dos tais bolinhos. Escusado será dizer que no meio daquele trabalho, a minha carabina não obteve o sucesso que eu esperava. Mas ao vê-la tão ocupada, eu próprio fui arrumar a arma a um canto, despi o casaco, arregacei as mangas da camisa e, esquecido já de caçadas, pus-me também a trabalhar. Lembro-me bem que já começava a estar cansado de mexer a massa dos bolos dentro de uma vasilha de loiça, quando a coisa aconteceu.
De resto, para cada um dos que compunham o nosso grupo, a estação não tinha sido das piores. A colheita de peles era na verdade boa, tanto em quantidade como em qualidade, e eu, pela minha parte, tinha no meu lote uma meia dúzia de raposas que não ficariam mal em nenhuma coleção. Isto quer dizer que havia boa disposição em geral.
Esquecidos os trabalhos e os perigos de vários meses, tranquilos os espíritos quanto ao futuro mais próximo, todos nós apenas pensámos em passar o melhor possível aquele tempo de descanso. Cada um, segundo a sua maneira de ser e os seus gostos, procurava, pois, unicamente, divertir-se.
Naquela noite, o grupo habitual tinha-se reunido em casa de Dan MacKay. Eramos três, o desse grupo: Paul Garry, um francês do sul, falador e homem de bons ditos, o inglês Jack Allison, e este vosso criado.
A barulheira infernal do único "bar" de Rossville fazia-nos dores de cabeça. Quanto às cartas, mal surgia um baralho, era sabido que Allison puxava pelo cachimbo, acendia e começava a pensar noutra coisa. Em mim e no francês o feito do jogo era ainda melhor: em meio de um lance decisivo tinham de nos acordar, porque o sono se apoderava de nós.
Para isto, e pelo facto de ter-mos tido a boa sorte de cair nas graças do velho Dan MacKay, todas as noites nos reunimos em casa dele. A mulher, a bondosa tia Mary, mal nos via chegar, punha em cima da mesa uma garrafa de velho "brandy" e quatro copos e ia-se sentar ao pé da luz, com as suas agulhas de "tricot" e os seus novelos de lã. E para ali estávamos, até à hora de recolher, contando histórias e enchendo a casa com o fumo dos cachimbos. O velho Dan sorria de boa vontade com as pilhérias de Garrah e escutava com agrado visível as narrativas de Allisson, que viajante infatigável, que tinha sempre uma história diferente para contar, passada em algum canto perdido do vasto mundo.
Ora, naquela noite, as peles e as caçadas constituíam o assunto da conversa. Allison descrevera já com colorido e julgo que com verdade, os trabalhos que lhe dera certa vez um tigre de pele magnífica atrás do qual ele tinha percorrido toda a região que medeia entre Indore e Bhopal, na velha Índia. E, a certa altura, não sei já qual de nós se lembrou de pedir ao velho Mac-Kay que nos contasse a sua primeira caçada.
Dan MacKay tinha sido, nos seus tempos, o melhor caçador de todo o Winnipeg. Ao escutar o pedido, a sua face ainda lisa e corada abriu-se num sorriso que fez estremecer os longos fios de prata das barbas patriarcais.
— Ouves, Mary? Estes amigos querem que lhes conte a minha primeira caçada. Que achas?
Ela levantou a cabeça e interrompeu a tarefa de contar as malhas do "tricot", para responder com um sorriso bondoso:
— Pois conta, Dan.
E ele contou.
O velho Dan MacKay encheu pausadamente o cachimbo, procurou uma posição mais cómoda na cadeira, e começou :
— Foi no ano de 1870, por um tempo assim como este. Eu ia nos meus doze anos e, apesar dos constantes pedidos que fazia a meu pai, ainda não tinha conseguido que ele me deixasse acompanhá-lo nas suas expedições. Entretanto, para me consolar e para que eu fosse fazendo a "mão", ele tinha-me dado de presente uma bela carabina de dois canos, para chumbo e bala, que eu não me fartava de admirar e de polir com todos os trapos que apanhava. Da primeira vez que saí com a arma, carregada com balas e de canos reluzentes como prata, não resisti à tentação de a ir mostrar a uma certa menina, dois anos mais nova do que eu, e que morava a pouco mais de duas milhas da nossa barraca.
Nesta altura da narrativa, Dan MacKay interrompeu-se para acender o cachimbo que se tinha apagado. Eu olhei para a tia Mary que seguia também a narrativa, e vi que o seu sorriso bondoso tinha uma expressão mais jovem, na sua face enrugada.
— Ora — continuou o velho Dan — na ocasião em que cheguei a casa da tal menina de que falei, fui achá-la, de avental posto e braços brancos de farinha, a preparar a massa de uns certos bolos doirados de que ela já então tinha o segredo. O pai fazia anos nesse dia e ela, enquanto ele andava por fora, estava a preparar-lhe a surpresa dos tais bolinhos. Escusado será dizer que no meio daquele trabalho, a minha carabina não obteve o sucesso que eu esperava. Mas ao vê-la tão ocupada, eu próprio fui arrumar a arma a um canto, despi o casaco, arregacei as mangas da camisa e, esquecido já de caçadas, pus-me também a trabalhar. Lembro-me bem que já começava a estar cansado de mexer a massa dos bolos dentro de uma vasilha de loiça, quando a coisa aconteceu.
"A porta tinha ficado aberta. Não sei se já lhe disse que era um tempo assim como este, quase de Primavera. E, de repente, um vulto tapou a abertura, intercetando a luz. Olhámos ao mesmo tempo. Era um urso, um urso castanho e enorme, erguido nas patas traseiras. Preparava-se para entrar. Não me lembro já o que pensei e é provável que não tivesse pensado em coisa nenhuma. O certo foi que pulei para a carabina, encostei-a ao ombro e disparei as duas balas no focinho da fera. Aquilo foi milagre, porque eu tinha medo que chegava para me impedir de fazer pontaria. Mas o urso oscilou nas patas, esfregou duas vezes o focinho como se quisesse arrancar de lá as balas e caiu atravessado na porta".
"Esquecia-me de lhes dizer que a tal menina se chamava Mary e que é a mesma que encheu estes copos, quando vocês chegaram. À vossa saúde, rapazes".
E Dan Mackay levou o copo à boca. Mas, antes de beber, os seus olhos encontraram-se com os da tia Mary, e sorriram, ambos. Então Paul Gerry levantou também o seu copo e bradou com o seu modo alegre:
— À saúde da tia Mary. Pela primeira pele de Dan Mackay I Hip... hip... hip...
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