sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

NOD200. A hipoteca falsa

 

O rancho estava hipotecado até ao último poste da cerca. O banco não tinha alma, e os homens que lá trabalhavam tinham o coração mais duro que a pedra seca do deserto.
Mas ele não era homem de deixar a terra morrer sem lutar.
Ao amanhecer, selou o cavalo como quem ata a própria esperança com correia curta. O vento frio batia-lhe no rosto, lembrando-lhe que nada na vida se ganha sentado à espera. Tinha longas milhas pela frente, e cada uma delas parecia perguntar se ainda valia a pena continuar. Ele sabia que sim.
A cidade era um ponto distante na linha do horizonte, meio engolida pelo calor e pela poeira. Mas era lá que os homens do dinheiro viviam, e era lá que ele teria de ir para falar com eles cara a cara, como um homem fala com outro quando a vida inteira depende disso.
Não ia pedir esmola.
Ia negociar.
E se o destino quisesse testar a sua vontade, que viesse. Porque um homem criado no campo aprende a resistir à seca, ao frio e aos lobos da noite, aprende até a resistir aos homens que acham que podem tirar-lhe o que é seu.
A estrada era longa.
Mas ele já tinha percorrido caminhos piores.
E enquanto seguia, com o chapéu puxado para a frente e o olhar firme no horizonte, só pensava numa coisa:
A terra não se rende.
E ele também não.
A estrada estreitava-se entre duas elevações de terra seca, onde a vegetação era pouca e a sombra ainda menos. Ele já tinha passado por ali muitas vezes, e sabia que aquele não era o melhor lugar para encontrar companhia.
Ainda assim, encontrou.
Dois cavaleiros surgiram ao longe, vindo devagar, como quem não tem pressa de mostrar ao que vem. Aproximaram-se pela frente, bloqueando o caminho. Um deles tinha o chapéu baixo demais nos olhos e um sorriso que não combinava com o calor da manhã.
O outro mantinha a mão perto do coldre. Não lhe tocava, mas também não afastava.
— Dia bonito pra viajar — disse o primeiro.
O rancheiro não respondeu. Só parou o cavalo, firme.
— Dizem que você vai à cidade — continuou o homem, cuspindo no pó. — Dizem que vai falar com gente importante… gente que não devia ser incomodada.
O rancheiro respirou fundo.
— Só vou tratar de um assunto meu.
— Pois é isso mesmo que não pode acontecer — disse o segundo, dando um passo com o cavalo. — Tem pessoas que preferem o seu rancho quieto, preso ao banco… e você bem longe da cidade.
Silêncio.
O vento passou entre eles como se estivesse a medir a coragem de cada um.
O rancheiro então inclinou um pouco o corpo para a frente, tirando o peso do cavalo, e disse com voz baixa:
— Pois vão ter de me tirar do caminho.
Foi o suficiente.
O homem do chapéu baixo puxou o revólver num movimento rápido. Rápido para um homem nervoso, mas lento demais para alguém que vive da terra e aprendeu cedo a não hesitar.
O rancheiro tombou do lado do cavalo, caiu no pó, rolou uma vez e sacou a arma enquanto o primeiro tiro passava por cima da cabeça dele.
O segundo bandido puxou o gatilho, mas o rancheiro já estava de joelhos.
Atirou uma vez.
Depois outra.
O eco dos disparos foi engolido pelo vento.
Quando ergueu os olhos, um dos homens estava no chão, agarrando o ombro. O outro tinha largado a arma e tentava rastejar para trás como se a poeira o pudesse salvar.
O rancheiro levantou-se devagar, sacudiu o pó das calças e tornou a montar no cavalo.
— Digam aos vossos patrões que não sou eu quem vão parar — disse. — Quem quiser o meu rancho terá de o tomar das minhas mãos. E ainda estou com ambas.
E seguiu pela estrada, sem olhar para trás.
A cidade estava longe, mas ele tinha tempo.
E coragem para o resto.

*

O silêncio dentro do banco ficou pesado como chumbo.
Era o tipo de silêncio que um homem aprende a reconhecer antes mesmo de puxar o gatilho.
Os dois pistoleiros avançaram um passo, armas meio erguidas.
O rancheiro não hesitou.
Atirou-se para o lado, derrubando uma cadeira e rodando no chão enquanto puxava o revólver.
O primeiro disparo ecoou no mármore como um trovão preso dentro de quatro paredes.
Um dos bandidos gritou, levando a mão ao braço.
O outro abriu fogo sem apontar, estilhaçou vidro, madeira, papéis que voaram como neve suja.
O banqueiro gritou e escondeu-se debaixo da mesa, tremendo como um porco antes do abate.
O rancheiro rastejou atrás de um balcão, levantou-se o suficiente para apontar e disparou outra vez.
O segundo bandido recuou, tropeçando numa cadeira e caindo de costas.
Tentou levantar a arma, mas o rancheiro foi mais rápido.
Um tiro seco.
Silêncio imediato.
O primeiro pistoleiro, ferido mas vivo, tentou rastejar para trás, mas o rancheiro apontou-lhe o revólver.
— Quem vos mandou? — perguntou, a voz rouca, firme.
O homem cuspiu sangue no chão polido.
— Não vai… fazer diferença…
Foi então que se ouviu o assobio.
Vindo da rua.
Depois, um estampido.
Outro.
E mais.
E o rancheiro percebeu: não estavam sozinhos.
A cidade inteira parecia ter acordado para o cheiro de pólvora.
Ele correu para a porta, mantendo-se baixo, e quando empurrou a madeira viu o pior:
Quatro homens espalhados na rua principal, alguns nos telhados, outros detrás de barris e varandas.
Um deles gritou:
— Ele aí vem!
Tiros.
O rancheiro saltou para o lado, rolando pela varanda do banco e caindo no chão de terra dura.
A poeira ergueu-se como uma cortina atrás dele.
Levantou-se com o instinto de quem já estivera em situações piores.
Correu em direção ao armazém, desviando-se entre balas que cortavam o ar.
Um disparo acertou no corrimão ao lado dele, estilhaçando madeira para todos os lados.
Entrou no armazém com um pontapé que fez a porta bater na parede.
O lojista escondeu-se atrás do balcão sem perguntar nada, sabia reconhecer o som de problemas.
O rancheiro atravessou o armazém até à porta dos fundos e saiu para o beco.
Dali, via o estábulo.
E o seu cavalo.
— Aguenta — murmurou.
Mas um homem apareceu no fim do beco, arma pronta.
Outro surgiu do telhado, saltando para o chão.
Estavam a apertar o cerco.
O rancheiro correu para um monte de caixas, saltou sobre elas e subiu para o telhado baixo do armazém.
Os homens dispararam debaixo dele, mas a madeira aguentou o suficiente.
No telhado, ele correu.
Sentia a cidade inteira atrás de si.
Tiros ecoavam nas paredes.
Portas batiam.
Vozes gritavam ordens.
Saltou para o telhado seguinte, rolou, levantou-se, e viu o estábulo à frente, ao alcance de um salto bem calculado.
— Vamos lá — disse, como se falasse com o destino.
Saltou.
Caiu mal, torceu o tornozelo, mas levantou-se devido à necessidade.
Correu para o cavalo.
Dois homens entraram pelo pátio, armas prontas.
Um deles gritou:
— Pára aí, maldito!
O rancheiro não parou.
Saltou para a sela e puxou as rédeas.
O cavalo relinchou, ergueu as patas e disparou pelo portão.
Os tiros vieram atrás dele como vespas enraivecidas.
Alguns passaram tão perto que ele sentiu o calor.
A cidade ficou para trás num borrão de poeira, madeira e gritos.
E quando finalmente alcançou a estrada aberta, virou-se uma última vez.
— Vou voltar — disse para o vento. — E vou acertar tudo isto.
E seguiu para longe.
Mas não para fugir.
Para se preparar.

*

O rancheiro cavalgou durante horas até chegar ao velho desfiladeiro onde a vista alcançava toda a cidade lá longe, deitada na poeira como um animal cansado.
Ali desmontou, respirou fundo e deixou o silêncio ditar o próximo passo.
Não demorou até ouvir cascos atrás de si.
Era o xerife.
— Sabia que não ia desistir — disse o homem magro, com o chapéu puxado e o bigode a tremer de cansaço.
— Não vim pedir ajuda — disse o rancheiro.
— Pois eu vim dar — respondeu o xerife. — Gente honesta tem pouco na vida. O pouco que tem, luta-se por ele.
O rancheiro olhou-o e percebeu que o xerife também tinha contas por ajustar.
— Há mais — continuou o xerife, entregando-lhe um envelope amarrotado. — Encontrei isto no cofre do banco. O banqueiro não trabalha sozinho.
Dentro do envelope havia contratos falsificados, mapas de terras e cartas assinadas por um nome conhecido demais: Jonas Calder, o homem mais rico a três condados, dono de metade do gado da região e de toda a ambição que o dinheiro pode comprar.
— Querem a tua terra — disse o xerife. — Para fazer passar o novo caminho das diligências. A tua água vale ouro.
— E para isso mandaram pistoleiros?
— Para isso… e para garantir que ninguém voltava vivo da estrada se tentasse impedir.
O rancheiro fechou o envelope com força.
— Está na hora de acabar com isto.
Mas antes que montassem, ouviram passos leves.
Era Ella, a rapariga do povoado, olhos escuros, firmeza no andar, e uma coragem que fazia os homens questionar o próprio valor. Trazia uma espingarda na mão e uma cesta ao ombro.
— Se vão enfrentar o Calder, vão precisar disto — disse ela, entregando munições e comida.
— Miúda, isto vai ser perigoso — disse o xerife.
— Tudo o que vale a pena é — respondeu ela com um meio sorriso.
O rancheiro hesitou.
— Ella… não devias estar aqui.
Ela levantou a espingarda.
— Sei atirar melhor do que metade dos homens da cidade. E não vou deixar que roubem a terra de quem merece ficar nela.
Ele queria discutir. Mas a verdade é que já não conseguia imaginar voltar sem ela.
E assim partiram os três.

O Confronto

A cidade estava silenciosa quando entraram.
Demasiado silenciosa.
As pessoas espiavam pelas janelas, esperando ver quem cairia primeiro.
Calder esperava na varanda do hotel, rodeado de quatro homens armados.
— Ora… o homem que devia estar morto — disse Calder. — Veio entregar a terra ou só veio morrer mais perto?
O rancheiro desmontou. O xerife fez o mesmo. Ella manteve-se ao lado deles, espingarda firme.
— Venho buscar justiça — disse o rancheiro. — E tu vais responder pelos crimes que cometeste.
Calder riu-se.
— Justiça? Neste fim de mundo? Quem pensa que és?
— Um homem — disse o xerife, avançando. — E isso basta.
Os pistoleiros dispararam.
O xerife puxou o rancheiro para trás de uma coluna.
Ella disparou primeiro, atingindo o homem mais próximo de Calder no ombro, fazendo-o cair.
O rancheiro avançou à esquerda, rolou no chão e acertou o segundo.
O xerife tomou posição no meio da rua, disparando com uma precisão fria e experiente.
Calder recuou, apavorado.
O último pistoleiro tentou fugir, mas Ella apontou e disse:
— A fuga não é caminho para homem nenhum.
Disparou.
Acertou na perna.
O homem caiu.
Com todos neutralizados, Calder tropeçou para trás, caindo na varanda.
— Por favor… posso pagar! Posso negociar!
— Já tiveste a tua chance — disse o rancheiro.
O xerife avançou e colocou-lhe as algemas.
— Em nome da lei, estás preso. E desta vez, a lei não tem preço.
As pessoas começaram a sair das casas, tímidas, depois confiantes.
O povoado voltava a respirar.

O Final Feliz

Com a conspiração exposta, o banco foi obrigado a devolver as terras.
A dívida, falsificada, deixou de existir.
O rancheiro voltou ao seu lar, onde a terra ainda tinha cheiro de trabalho honesto.
Ella passou a visitá-lo mais vezes do que admitia.
E um dia, ao entardecer, enquanto o rancho se pintava de ouro, ela disse:
— Achas que um dia esta terra pode ter espaço para mais alguém?
Ele olhou para ela, tocou-lhe a mão e respondeu:
— Sempre teve. Só estava à espera da pessoa certa.
Ella sorriu.
E o rancheiro soube que, pela primeira vez em muito tempo, o futuro estava no lugar certo.
O xerife, velho amigo agora, veio jantar com eles muitas vezes.
E a cidade, finalmente livre do medo, começou a crescer corretamente.
No Oeste, finais felizes são raros.
Mas quando acontecem…
duram.


FIM

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