quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

NOD199. O pistoleiro que recusava a ternura

 

No fim da tarde, quando o sol tombava sobre a planície, ele estava sempre lá, encostado ao beiral do saloon, chapéu baixo, olhos meio ocultos, como se vigiasse não o mundo, mas a si próprio.
Era o tipo de homem que não aceitava aproximações. Um gesto amigável fazia-lhe a mão ir instintivamente para perto do coldre, não por ameaça, mas porque não sabia o que fazer com ternura.
Davam-lhe uma palavra boa, “Como vai, parceiro?” — e ele respondia com um “Vou indo” tão seco quanto a poeira da estrada.
Alguns achavam que era arrogância. Outros, que era medo. Mas quem o conhecia de ouvir histórias sabia que havia nele uma solidão antiga, daquelas que se aprendem nos desertos e nunca mais se largam.
Era como uma terra dura que recusa a chuva, convencida de que pode sobreviver sem ela. Como um cavalo bravo que não admite a mão que o podia salvar.
E assim vivia o pistoleiro: isolado por opção, cercado por fantasmas que só ele escutava, crescendo para dentro como um cactus teimoso, num deserto onde todo homem livre pode ser rei, mas só se ousar aceitar um pouco de companhia
na sombra da fogueira. 
O pistoleiro era um homem sem margens suaves. O rosto, queimado pelo sol e pelo pó, parecia esculpido por anos de caminhos pedregosos; cada ruga era uma cicatriz, cada silêncio um muro. Falava pouco e quando falava, era com a secura de quem não deve nada a ninguém. Bebia sozinho, montava sozinho, vivia sozinho. A ternura, para ele, era uma sombra perigosa: podia distrair, podia abrandar a mão, podia custar a vida. Por isso a rejeitava, como se fosse veneno.
Era um homem que aprendia cedo a confiar apenas no próprio revólver. E ninguém, ninguém sequer, ousava aproximar-se dele sem convite, porque ele nunca convidava.
Naquela tarde, cavalgava pelo campo aberto, com a planície inteira a respirar poeira dourada. O vento empurrava-lhe o chapéu para trás e o ritmo do cavalo era a única coisa que lhe lembrava que ainda estava vivo.
E então veio o som.
Seco, único, certeiro.
Um tiro.
Não viu de onde. Sentiu apenas o impacto, quente e brutal, empurrando-o para fora da sela. Caiu na terra dura como um saco de pedras, a visão embaciada, o mundo a rodopiar. Tentou erguer a mão para o coldre, mas o braço não o obedeceu. Sentiu a poeira colá-lo ao chão e depois… nada.

O pistoleiro voltou a si lentamente, como quem regressa de um desfiladeiro escuro.
As madeiras do teto eram claras, alinhadas com cuidado. Um cheiro fresco, ervas esmagadas, talvez manjerona, subia do pano que lhe envolvia o ombro.
Quando tentou mexer-se, um fio de dor atravessou-lhe o peito.
Grunhiu.
— Não deverias levantar a cabeça tão depressa.
A voz vinha do lado esquerdo.
Era firme, mas suave.
Feminina.
Ele virou o rosto e viu-a, não um jovem, mas uma jovem.
Tinha cabelo escuro preso num lenço azul e uns olhos que lembravam água profunda, daquelas que não pedem licença para refletir o céu. Sentava-se numa cadeira simples, segurando uma tigela com compressas húmidas.
O pistoleiro piscou, confuso.
Conhecia aquele rosto.
Meses antes, na cidade, ela tinha derrubado um balde de farinha ao sair da loja do pai. A farinha caiu sobre as botas dele, e ele, sempre rápido a reagir a qualquer aproximação, deu-lhe um empurrão rude, quase uma bofetada. Ela não chorou, apenas ergueu o queixo com uma dignidade feroz.
Agora era ela quem lhe tinha salvado a vida.
— Porquê? — perguntou ele, a voz áspera, quase incrédula.
Ela molhou outra compressa, sem o olhar diretamente.
— Porque te deixaram morrer seria uma crueldade maior do que qualquer coisa que me fizeste.
Ele engoliu. Aquelas palavras, ditas com calma, feriam mais fundo do que a bala.
— Foste tu que me encontraste?
Ela assentiu.
— Vi o teu cavalo a vagar sozinho. Segui-o. Estavas caído perto do vale, com sangue demais no chão. Trouxe-te para cá.
Ela tocou-lhe no ombro. O toque era leve, quase estudado, como se tivesse medo de que ele se partisse ou de que ela própria se queimasse ao tocá-lo.
Ele sentiu algo novo, ou talvez antigo, mas enterrado, erguer-se dentro do peito.
— Quem fez isto? — rosnou, quando a dor permitiu falar mais alto. — Preciso de saber quem puxou o gatilho.
Ela largou finalmente a compressa, respirando fundo.
— Ouvi falar de um cavaleiro que passou a galope pela fronteira do vale. Alguns dizem que era contratado. Outros, que tinha contas antigas contigo.
Os olhos dela pousaram nos dele, tão diretos que quase doíam.
— Mas não devias ir. Não agora. Não assim.
Ele sustentou-lhe o olhar pela primeira vez.
Aquela mulher, aquela mesma que ele tinha magoado sem motivo, cuidava dele como se valesse alguma coisa.
— Tens um nome? — perguntou ele, surpreendendo-se com a própria voz.
Ela sorriu. Pequeno, mas verdadeiro.
— Chamo-me Clara.
O nome caiu nele como uma brisa inesperada. Clara. Clara como água, como luz, como algo que ele nunca tinha deixado aproximar-se.
— Clara — repetiu, quase um sussurro rouco. — Obrigado.
Ela desviou os olhos, um rubor discreto subindo-lhe ao rosto.
— De nada. Só… tenta não morrer outra vez.
Ele quase sorriu e isso, para ele, era mais raro que a chuva naquele deserto.
Quando finalmente montou o cavalo, a ferida incomodava, mas outra coisa queimava mais: a necessidade de voltar. De a ver de novo. De lhe pagar a dívida que não era de sangue, mas de alma.
— Volto quando acabar isto — disse, a mão já nas rédeas.
Clara cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha.
— Vou cobrar-te essa promessa.
Ele inclinou ligeiramente o chapéu, o gesto mais próximo de ternura que tinha oferecido a alguém em muitos anos.
Então virou o cavalo para o campo aberto, seguindo a pista do atirador.
Mas agora, pela primeira vez, não partia sozinho.
Havia um nome no seu pensamento.
Havia um rosto que o puxava de volta.
Havia uma história a começar.

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