O Dia em que Jonas Encontrou o Lobo Velho
A serra estava branca de neve naquele inverno. Daqueles
invernos que roubavam o fôlego e deixavam a solidão ainda mais pesada. Jonas
era mais novo então, mas já carregava no rosto a expressão de quem aprendera
cedo que a vida é curta e a morte anda depressa.
Naquela manhã, seguia um rasto estranho entre os pinhais.
Não era de homem, nem de animal comum. Pegadas irregulares, como se o bicho
estivesse ferido. Jonas avançou devagar, espingarda em punho, atento ao
silêncio que cobria tudo como um lençol de vidro.
Ouviu o gemido antes de o ver.
Sob um penedo tombado, uma criatura grande respirava com
esforço. Jonas aproximou-se, pronto para disparar, mas o que encontrou não era
ameaça. Era um lobo jovem, enorme, mas magro, a pata presa sob a pedra e sangue
gelado espalhado na neve como tinta.
Tinha os olhos abertos. Olhos de fera, sim, mas também de
desespero.
Jonas não sabia dizer quanto tempo ficou ali, parado, a
olhar para o animal. O rifle pesava-lhe nos braços. A decisão era simples:
deixava morrer ou acabava o sofrimento.
Mas houve algo naqueles olhos, uma espécie de orgulho
silencioso, uma garantia de que, mesmo prestes a morrer, não temia homem algum.
Arrastou a pedra com esforço. Foi preciso tempo, paciência e
dor nos músculos. Quando finalmente libertou a pata, o lobo recuou, rosnando
fraco.
Mas o lobo não fugiu. Ficou ali, a sangrar na neve, como se
soubesse que sozinho não duraria.
Pegou no animal como pôde, carregando-o até a cabana que
usava como abrigo de inverno. Tratou feridas, aqueceu água, cortou lenha,
resistiu às noites frias e à respiração pesada do animal ferido.
Dias depois, já firme nas patas, aproximou-se de Jonas e,
pela primeira vez, encostou-lhe o focinho na mão.
Não era submissão. Não era amizade.
Era pacto.
E quando a primavera chegou, os dois já caminhavam juntos
pelos trilhos da serra, dois sobreviventes nascidos de um inverno duro.
O Guardião da Montanha
O vento descia da serra como um aviso antigo, assobiando
entre as fragas e levantando folhas já cansadas de outono. Aquele era um tempo
de transição e, para quem conhecia a montanha, não havia enganos: o inverno
vinha chegando, firme como um cavaleiro que não muda o passo.
Jonas Rocha caminhava pelo trilho estreito, capa surrada
batendo-lhe nas pernas, chapéu puxado o suficiente para esconder o olhar de
quem já vira mais do que gostaria. Ao seu lado, silencioso como uma sombra com
vida própria, seguia o Lobo Velho. Não era um lobo domesticado, ninguém
naquelas bandas acreditaria nisso. Era apenas um entendimento antigo entre dois
sobreviventes.
Jonas parou num ponto alto, onde a serra se abria para o
vale como se fosse um livro desgastado pelo tempo. Pousou a mão no tronco de um
castanheiro. Sentia a vibração da terra ali, por baixo da casca fria. A
natureza tinha os seus próprios medos… e os seus próprios ciclos.
— Sossega, velha amiga — murmurou. — A geada não dura para
sempre.
O Lobo Velho ergueu a cabeça, focinho voltado para o vento.
Farejava qualquer coisa. Silêncio, bafejado por um perigo que ainda não tomara
forma. Jonas conhecia aquele sinal: nunca ignorava o instinto do animal.
— Vamos — disse, retomando o passo.
O trilho que seguiam era antigo. Mais antigo que Jonas, mais
antigo que o lobo. Aquele caminho conhecia histórias que nenhum homem vivo
podia contar.
Enquanto caminhavam, Jonas pensou no que o prendia ali. Não
era honra, nem dever — palavras bonitas demais para a vida dura que levava. Era
apenas o entendimento simples de que alguém precisava vigiar a serra quando a
estação mudava. Sempre tinha sido assim.
À medida que o sol descia atrás das fragas, tingindo tudo de
laranja e ferrugem, Jonas sentiu o peso do dia, mas também a paz que só a
solidão da montanha oferecia. Ele e o lobo já tinham visto verões cruéis,
invernos famintos, homens piores do que tempestades… e ainda estavam de pé.
Quando chegaram à brenha que chamavam de lar, Jonas largou a
espingarda num canto e respirou fundo.
— Trabalho feito por hoje — disse.
O Lobo Velho deitou-se, cansado mas atento, como se ainda
vigiasse o homem.
E talvez vigiasse mesmo.
Na montanha, certas lealdades não precisavam de palavras.
Sinal na Escuridão
Jonas acabara de acender o lume quando reparou que o Lobo
Velho não se deitara para dormir. Estava ali, parado na entrada da gruta que
improvisavam como abrigo, corpo tenso, orelhas erguidas, o focinho apontado
para o escuro como a flecha de um arqueiro.
— Que foi agora? — murmurou Jonas, sabendo que o animal não
precisava de palavras para entender.
O lobo soltou um rosnar baixo, quase um aviso para a própria
noite. Jonas levantou-se devagar, sentindo o peso da espingarda na mão como se
fosse continuação do braço. Não havia pressa nos seus movimentos, pressa era
para quem tinha medo, e Jonas já tinha gasto o dele havia muitos anos.
Lá fora, a serra parecia um mar negro e imóvel. Mas Jonas
sabia que a imobilidade é onde as sombras ganham coragem.
— Mostra — disse.
O Lobo Velho andou alguns passos, parando junto a uma pedra
larga, farejando o ar com a precisão de quem conhece cada cheiro da montanha. A
seguir virou a cabeça, olhando Jonas nos olhos. Era um aviso claro como um
tiro.
Havia alguém ali.
Jonas ajoelhou-se e tocou na terra. A superfície estava
remexida, leve demais. Pegadas. Duas. Talvez três. Pesadas. Homens. E recentes,
bem recentes.
— Caçadores — murmurou. — Ou coisa pior.
Na montanha, um caçador comum não se aproximava das terras
de Jonas. Era costume antigo respeitar fronteiras. Quem entrava à socapa,
entrava com intenção.
Jonas levantou-se devagar, o vento mexendo-lhe o casaco como
se quisesse avisá-lo também.
— Estão a sondar terreno — disse baixo, quase para si. — A
ver se a serra ainda é minha.
O Lobo Velho caminhou até a beira do precipício, onde a lua
recortava a silhueta da serra em faixas cinzentas. Roçou o chão com a pata,
inquieto. Jonas conhecia bem aquele gesto. O animal só fazia aquilo quando
sentia sangue em breve.
E então ouviu.
Um estalido seco. Ramo partido. A três, talvez quatro
dezenas de metros abaixo.
— Não são lobos — disse Jonas, apertando o cabo da
espingarda. — Lobos não anunciam passos.
Outro estalido. Dessa vez acompanhado por um murmúrio
abafado, como alguém praguejando em voz baixa.
O vento trouxe cheiro de pólvora velha. Isso bastou para
Jonas entender.
— Pistoleiros. E dos que não sabem andar na serra.
O Lobo Velho baixou o corpo, pronto para atacar ou fugir.
Jonas pousou-lhe a mão no lombo.
— Calma, companheiro. Aqui nós escolhemos a hora.
A lua subiu mais um pouco, iluminando um ponto entre os
arbustos. Um brilho metálico.
A coronha de uma arma.
Confronto na Ravina
O brilho metálico moveu-se. Um homem surgia meio oculto
pelos arbustos, arma encaixada no ombro. Outro apareceu por trás, tropeçando na
própria ousadia.
Jonas já estava de espingarda levantada quando o primeiro
disparo cortou o ar. A bala passou por cima do chapéu dele, estilhaçando pedra.
— Deixem-se ver! — gritou Jonas. — Ou vão morrer na sombra
como ratos!
A resposta veio em forma de mais dois tiros. A serra
devolveu o eco como um trovão cansado.
O Lobo Velho rosnou, corpo hirto, a respiração curta. Jonas
sentiu que algo nele se partia só de olhar o animal assim — mas sabia que não
podia detê-lo.
— Fica. — A palavra saiu firme, mas o lobo não a aceitou.
Num salto silencioso, o Lobo Velho lançou-se ravina abaixo,
desaparecendo na escuridão como um braço da própria serra.
— Não! — gritou Jonas, avançando, mas era tarde.
O ataque foi rápido. Garras, dentes, um trovão de fúria
antecipada por anos de proteção silenciosa. Jonas ouviu um urro humano, um dos
bandidos fora derrubado. O segundo gritou qualquer coisa, assustado demais para
soar como um homem.
Depois veio o tiro.
Um único. Surdo. Final.
O gemido do Lobo Velho foi curto. Um som pequeno para um
animal tão grande no coração de Jonas.
A raiva subiu nele como fogo seco.
Jonas desceu a ravina numa corrida brutal, a espingarda
presa ao peito. Avistou a silhueta do lobo caído, o pelo manchado de sangue
escuro. Junto dele, um dos bandidos jazia rasgado na garganta. O outro, pálido
como cal fresca, tentava recarregar às pressas.
Não teve tempo.
O disparo de Jonas atingiu a arma do homem, arrancando-a da
mão. O bandido tropeçou para trás, gritando.
— Não me mates! — balbuciou, escorregando na terra solta.
Jonas avançou sobre ele com passos firmes.
— Tu já mataste o que eu não posso substituir.
O bandido recuou mais um pouco — e foi a serra que o puniu.
O chão cedeu sob o peso dele, pedras rolando como se despertassem de um sono
profundo. Uma laje enorme desprendeu-se da encosta, arrastando o homem num
rugido seco.
O corpo desapareceu de vista, engolido por poeira e pedra.
Silêncio.
Jonas ficou ali, respirando o ar frio, ouvindo apenas o seu
próprio coração a bater.
Depois voltou-se para o companheiro caído.
Ajoelhou-se ao lado do Lobo Velho. Passou a mão pelo pelo
ainda quente, com cuidado, como se acariciasse uma memória e não um corpo.
— Levaste metade da minha vida contigo — murmurou. — E foste
melhor que muita gente que conheci.
Não houve mais palavras. Jonas ficou ali até a lua se
esconder atrás das montanhas. Só então ergueu o lobo nos braços, levando-o de
volta para o alto da serra onde costumavam vigiar o mundo juntos.
Enterrou-o junto ao castanheiro velho.
Quando terminou, sentou-se, cansado, olhando o vale escuro.
As primeiras geadas brilhavam sob a luz pálida da madrugada.
— A montanha ficou mais vazia hoje… — disse ele, com a voz
partida.
E a história acabou ali, com Jonas Rocha — o Guardião da
Montanha — sentado ao lado do túmulo do seu único amigo, enquanto o inverno
descia, lento e inevitável, sobre a serra.
EPÍLOGO — O Último Guardião
Meses após a morte do Lobo Velho, a serra parecia diferente.
Não em forma, mas em silêncio. Era um silêncio pesado, como o de uma casa
depois de um funeral.
Jonas continuou a patrulhar os trilhos, mas faltava-lhe o
eco dos passos do animal ao lado. A solidão vinha agora em forma de saudade e a
saudade, ele sabia, era peso maior que qualquer inverno.
Com o tempo, os bandoleiros deixaram de aparecer. Alguns
diziam que tinham ouvido histórias de um homem que vingara um lobo como se
vingasse sangue do próprio sangue. Outros falavam de uma rocha que caíra no
momento exato, como se a serra tivesse escolhido o seu lado.
Jonas não se importava com rumores. O que sabia era simples:
a montanha cumprira o que tinha de cumprir, e ele também.
Uma noite, sentado junto ao castanheiro onde enterrara o
companheiro, sentiu o vento deslocar-se de forma estranha. Não havia barulho,
mas Jonas reconheceu o sinal, aquele silêncio cheio, atento, que só existia
quando o Lobo Velho estava por perto.
— És tu, velho amigo? — perguntou, a voz rouca, mas calma.
O vento soprou mais firme, movendo folhas secas em torno do
túmulo. Jonas fechou os olhos. Não precisava ver. A serra falava como sempre
falara: às vezes com pedra, às vezes com neve, às vezes com lembranças.
E naquela noite, falou com a memória de um lobo.
Pela primeira vez em anos, desceu a serra sem olhar para
trás.
Os caminhos que percorrera toda a vida permaneceram lá, mas
agora cabia à serra guardá-los. Ou a quem ela escolhesse.
Enquanto Jonas se afastava, um uivo leve, quase um sussurro,
ecoou entre os penedos. Talvez vento. Talvez lembrança.
Mas Jonas sorriu.
Numa montanha antiga, certas presenças não morrem nunca.
E assim terminou a história do Guardião e do Lobo Velho,
dois espíritos feitos da mesma terra, ligados por um pacto nascido na neve e
selado para além dela.

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