Poderá um índio, uma criatura selvagem, sem princípios, um dia ir contra os interesses da sua tribo por gratidão e amizade a um grupo de brancos? Este é o fio condutor desta história que relata o reencontro de Trevor e Kapiak num momento em que o primeiro tinha de cumprir uma missão importante, o seu cavalo estava morto e ele ferido.
A história, não assinada, foi publicada no fascículo do Cavaleiro Andante 433. Também desconhecemos o autor da ilustração
Tinha que chegar, fosse como fosse! Se não chegasse ao ponto
onde o regimento estava acampado, para lá do Desfiladeiro do índio, seria o fim
para a gente do Forte.
Mas chegaria? O ferimento do braço palpitava como se um
martelo invisível lhe batesse. E a sede atormentava-o. Em redor, só rochas e pedras,
sem um fio de erva. E o Sol dardejava, implacável.
— Tenho que chegar!
Tentou concentrar o pensamento sobre o que estava
acontecendo no Forte. Podia imaginá-lo, porque conhecia a azáfama angustiosa
das horas que precediam um ataque dos Apaches. Porque não fora possível evitar
que os guerreiros de Makacina descessem pela pista da guerra? Mas o coronel
Bert não quisera ouvir razões e teimara em construir um fortim secundário, exatamente
no sítio onde os Apaches costumavam depor os corpos dos seus mortos. Era terra sagrada,
para eles... O coronel, homem corajoso, de poucas palavras e ação rápida, mas
teimoso como todos os irlandeses, não cedera.
E quando o sachem Makacina lhe enviara dois embaixadores a
pedir que mudasse o fortim para outra zona, expulsara-os com más palavras.
Nessa mesma noite uma seta com uma mensagem fora cravar-se
na paliçada. Makacina era um homem de honra e avisava os Rostos Pálidos de
Forte Salmiedo que se, entre duas luas, não tirassem o fortim da «terra sagrada
dos antepassados», toda a tribo partiria ao ataque, para obter pela força o que
não obtivera pela paz.
O coronel Bert encolhera os ombros, partira a seta ao meio
e, sem modificar os seus projetos um milímetro que fosse, ordenara que o grosso
das tropas se pusesse em marcha para a costumada inspeção às terras da
periferia. E Forte Salmiedo ficara quase desguarnecido.
Depois, duas luas tinham passado. As estafetas do coronel
chegaram com a notícia de que as tropas tinham acampado para lá do Desfiladeiro
do índio. Nas colinas vizinhas havia fogueiras acesas. Uma segunda seta foi
cravar-se na paliçada: era o ultimato. Dois dias depois o Forte seria atacado.
Era preciso avisar o coronel Bert. E, para o avisar,
necessário se tornava atravessar praticamente as terras ocupadas pelos Apaches
de Makacina... Tiraram-se sortes. A sorte designou Trevor. E Trevor partiu!
Mas, no caminho, encontrara um puma e ficara ferido. O
cavalo escorregara numa ravina e coxeava. A água acabara-se-lhe. O Desfiladeiro
do índio parecia longínquo como as estrelas.
— Shhh!!
O animal não podia mais. Rolou os olhos, coxeou, caiu.
Trevor caiu também e caiu mal. Ficou imóvel sobre as rochas, com a boca aberta,
num desesperado e inútil grito.
—o—
—Tu, Trevor, quieto! Kapiak pôr ervas boas na ferida...
Trevor cerrou os dentes. A dor do braço perturbava-lhe o
cérebro. Estava ainda tonto da queda. Kapiak...
Ouvindo-lhe a voz, julgava-se ainda no tempo em que
combatera lado a lado com alguns Peles-Vermelhas na Guerra do México. Nesse
tempo, Kapiak, embora sendo um índio, alcançara as divisas de cabo. Ah! E como
ele fazia brilhar os botões do uniforme, Kapiak...
—Trevor, quieto! Ferida má! Agora Kapiak molha testa...
— Mas a guerra acabou!
De repente fizera-se luz no cérebro de Trevor. E
contorceu-se, para se libertar das mãos do índio.
— Deixa-me, Kapiak!
O Apache largou-o. Trevor ergueu--se e olhou-o, mais lúcido.
Kapiak ostentava as cores de guerra e trazia à cintura uma enorme faca de escalpe.
— Kapiak, onde me
encontraste?
— No Desfiladeiro Vermelho. Tu ferido e teu cavalo a
morrer... Eu matar ele com a tua pistola, para não ver sofrer. Bom cavalo!
— A pistola!
Trevor encontrou o coldre vazio. Olhou em volta e viu-a no
chão, ao lado dos apetrechos de Kapiak.
— Dá-ma, Kapiak!
— Não! Eu saber porque Trevor andar longe do Forte. Trevor
ia chamar o coronel Bert. Mas Kapiak estava de sentinela no Desfiladeiro do
índio.
— Kapiak! — gritou Trevor —Kapiak, tu viveste a meu lado, na
guerra! Passámos juntos fome e fadiga, juntos defrontámos a morte. Salvei-te a
vida, lembras-te?
O Apache mantinha-se impassível. Cruzando os braços sobre o
peito, disse, lentamente:
— Kapiak lembra! Mas Kapiak pagou hoje, porque, se não
socorresse Trevor, Trevor morria...
— Peço-te, Kapiak!
E Trevor reparou que chorava. Tinha querido conter-se,
porque sabia que o índio desprezaria aquelas lágrimas, julgando-as indignas de
um homem, mas não conseguira. Sentia o coração muito amargurado!
— Kapíak — continuou — recordas-te da gente do Forte?
Recordas-te de Susy? Está uma linda rapariga, de caracóis de oiro e boca
sorridente. Quando era pequenina, brincavas com ela.
O Apache parecia uma estátua de bronze. Nem um só dos seus
músculos tremia.
— Kapiak! — insistiu Trevor —Lembras-te da senhora Linda?
Uma vez, quando tu tinhas muita tosse, foi ela quem te tratou. É agora uma
velhinha branca e frágil. Porque queres que Susy e a senhora Linda morram? Que
mal fizeram elas? Deixa-me passar, Kapiak... Éramos amigos... fomos camaradas.
O Apache continuou sem responder, mas bateu com os
calcanhares no chão, como se quisesse dizer
que aquela era a terra dos índios e que os brancos não tinham
o direito de ali erguer fortins.
— E agora ouve-me! Salvaste-me a vida, mas não vale! Farei
tudo para fugir. Se quiseres apanhar-me, terás que me matar. Compreendeste?
Ainda desta vez Kapiak não respondeu. Sentou-se com as
costas contra a rocha, pôs a pistola debaixo dos pés e fechou os olhos, como se
fosse dormir.
—o—
Trevor, que se mantivera imóvel, contando os minutos do
crepúsculo, cerrou os dentes para ignorar as dores da carne ferida. Depois começou
a deslisar lentamente, muito lentamente, um centímetro de cada vez. A cada
centímetro olhava Kapiak... Devia dormir, porque não se mexia.
Suando frio, Trevor continuava a deslisar. Via a pouca
distância a montada do Pele-Vermelha. Se pudesse alcançá-lo... saltar-lhe para
a garupa... talvez conseguisse chegar ao Desfiladeiro.
— Ahhh!
De um pulo, Kapiak saltara-lhe em cima e apertava-o com os
joelhos. Trevor sentiu nas costas a ponta da faca. Fechou os olhos e rezou, porque
estava chegada a sua última hora. A faca avançava...
— Não!
E, de repente, sentiu-se livre. De repente, duas mãos fortes
o agarraram por baixo dos braços e o puseram de pé. Dois olhos ardentes o
fixaram.
— Kapiak não ingrato! Kapiak lembra! Kapiak diz a Trevor:
vai!
— Obrigado!
Que outra coisa lhe podia dizer? O Pele-Vermelha ajudou-o a
trepar para a garupa do cavalo e lançou um grito gutural. O cavalo partiu a
galope. Com a força do desespero, Trevor premia-lhe os flancos com os joelhos
e, com as mãos, apertava-lhe a forte crina. Mas levou um bom momento antes de
chegar ao Desfiladeiro. Kapiak estava imóvel no alto das rochas e erguera um
braço ao céu, onde a lua brilhava. Talvez pedisse perdão aos seus antepassados.
A amizade e a gratidão tinham vencido. E Trevor compreendeu
que, quando tivesse contado tudo aquilo ao coronel Bert, o coronel decidiria
mudar o fortim e estender mão amiga ao sachem Makacina.
E, então, em Forte Salmiedo a vida tornaria a correr serena:
como no coração de Kapiak.
FIM
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