segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

NOD197. O machado de guerra

 

O rancho Morrigan ficava no extremo leste do deserto do Arroyo Seco, tão perto do território indígena que as noites pareciam carregar vozes antigas no vento. Era um lugar duro, de madeira envelhecida, cercas improvisadas e uma casa simples, mas sólida, onde a vida teimava em recomeçar todos os dias.
Ninguém ali era santo.
Jack Morrigan, pistoleiro de renome maldito, tentava há dois anos trocar o barulho da pólvora pelo ranger dos portões e o mugido do gado. A seu lado vivia Clara Belle, outrora cantora de saloon em Tucson, com voz de mel e punho de ferro. Entre eles não havia juras, nem anéis, nem planos, apenas uma espécie de pacto silencioso entre dois sobreviventes que tinham desistido de quase tudo, menos do direito de tentar outra vez.
E foi por isso que recusaram partir.
Dias antes, o chefe índio Tahuari, homem sábio de olhar que via mais longe que qualquer outro, tinha aparecido à porta do rancho. Chegou sozinho, sem armas à vista, montado num garanhão cinzento que parecia ter sido moldado pelo próprio vento.
Jack recebeu-o de maneira calma, com a mão discretamente perto do coldre.
Clara manteve-se na varanda, apertando o lenço ao pescoço para esconder o nervosismo.
Tahuari desmontou devagar. Olhou-os longamente, antes de falar:
— Partam antes que seja tarde.
A voz era firme, grave, carregando séculos.
— Alguns dos meus guerreiros desenterraram o machado de guerra. Não posso segurá-los por muito tempo.
Jack respirou fundo.
Clara desceu o primeiro degrau, engolindo o medo.
— Esta é a nossa casa — respondeu Jack, num tom quieto, quase triste. — É tudo o que temos agora.
Tahuari observou os dois.
Não viu bravura juvenil nem arrogância — viu apenas cansaço. E raízes recentes, mas profundas, na terra que pisavam.
— A terra é velha. Mas os homens são teimosos.
O chefe suspirou.
— Falei o que devia. Que o espírito do cavalo vos proteja.
Montou e partiu devagar, como se desse tempo para que mudassem de ideia.
Mas eles não mudaram.
Era ali ou lado nenhum.
Jack já tinha corrido demais na vida: de dívidas, de vinganças, de bandidos e de fantasmas que só ele via. Clara fugia de outros demónios — noites de saloon cheias de homens bêbados, promessas vazias e aplausos comprados. No rancho, ela cantava só para as galinhas e para o vento. E pela primeira vez, parecia feliz.
Abandonar aquele pedaço de terra seria admitir derrota e ambos já tinham perdido o suficiente.
Agora, na noite das setas, estavam a pagar o preço dessa teimosia.
Jack fugia em cavalgada dura pelo desfiladeiro, as setas inimigas rasgando o ar atrás dele como pirilampos de vingança. Cada uma dizia o que Tahuari já havia dito em paz: "É tarde demais."
Mas Jack Morrigan não corria para sempre.
Nunca correra.
No topo da colina virou o cavalo, pronto a enfrentar a morte de peito aberto. E aí surgiu ela, Clara Belle, montada na sua égua ruana, rifle em punho, olhar claro, decidido, sem um tremor.
Era assim desde que se conheceram: nos momentos em que ele esperava não ter ninguém, ela aparecia. E nos momentos em que ela fraquejava, era ele que segurava o mundo.
Lado a lado, dispararam contra as sombras do vale.
Os guerreiros, percebendo que o ataque surpresa falhara, recuaram como ondas escuras, desaparecendo nas fendas da ravina. Não era vitória, era apenas um adiamento. Mas era o suficiente.
Quando o silêncio voltou, Clara respirou fundo, o peito ainda arfando da adrenalina.
— Eles vão voltar, Jack.
O olhar dela não era de medo. Era de alguém que conhece a vida e os seus custos.
— Eu sei — respondeu ele.
Guardou a arma, endireitou o chapéu.
— Mas há coisas que valem o que custam.
Clara sorriu devagar, aquele sorriso raro que só mostrava quando deixava que o rancho lhe amolecesse os cantos da alma.
— Então vamos para casa. Temos cercas para reparar.
E juntos desceram a colina.
A lua iluminava o caminho de volta para o rancho entrançado pela madeira, pelo pó e pela esperança.
A guerra podia estar a caminho, mas naquele momento, naquele breve instante de paz, sabiam que ainda tinham o que defender.
O Oeste não dava segundas oportunidades.
Mas eles tinham construído uma.
E estavam dispostos a morrer por ela.

*
O Cerco do Arroyo Seco

A madrugada ainda nem sonhava acordar quando o primeiro grito indígena rasgou a escuridão.
Jack Morrigan abriu os olhos ao som de cascos furiosos.
Clara já estava de pé, o rifle apontado à janela.
— Eles vieram. — disse ela, num sussurro seco.
Vieram, sim.
Como sombras montadas em cavalos selvagens, os guerreiros rodearam o rancho num círculo apertado, movendo-se em espiral, zunindo gritos de guerra que faziam a madeira tremer. Jack contou pelo menos vinte, talvez mais.
— Ao chão! — gritou ele.
Uma chuva de setas incendiárias atravessou o ar, cravando-se no telhado, no alpendre, nos barris de água.
O estábulo foi o primeiro a ceder: a palha seca pegou fogo num instante. Os cavalos relincharam de dor e medo. Clara levou a mão à boca.
— Jack… o estábulo…
— Esquece o estábulo, pensamos nisso depois. Agora temos de sobreviver.
Ele puxou a mesa pesada e encostou-a à porta. Depois colocou balas novas no cinturão, respirou fundo e apagou o medo como quem apaga um cigarro.
Os guerreiros rodavam em círculos, levantando nuvens de pó que se infiltravam nas janelas partidas. O fumo do estábulo ardia forte, entrando na casa, queimando os olhos, sufocando-lhes o peito.
Clara tossiu, segurando o pescoço.
— Jack… não aguentamos muito mais…
— Aguentamos sim. — rosnou ele. — Enquanto estivermos vivos, aguentamos.
Dispararam pelas janelas, poupando munição como quem guarda água no deserto.
Cada tiro de Jack derrubava um cavaleiro ou afastava outro.
Cada tiro de Clara era preciso como uma agulha de costureira.
Mas o fogo subia.
O telhado começava a crepitar.
O ar tornava-se pesado, tóxico.
A casa parecia um forno prestes a colapsar.
— Jack… — disse Clara, num fio de voz. — Não vamos sair daqui.
Ele olhou-a. Nem medo, nem pânico.
Só resignação e amor, daquele tipo que não se fala, só se carrega.
E então… ouviram.
No início pareceu o vento.
Depois um eco de metal.
E então, claro como o dia:
O som do clarim.
Um toque alto, cortante, que fez os guerreiros hesitarem, recuarem, olharem para o horizonte.
— O Exército. — murmurou Jack, com incredulidade.
Pela entrada do vale surgiram soldados da cavalaria, alinhados, disciplinados, avançando com calma letal. A bandeira ondulava, iluminada pelo fogo do estábulo que ardia como um farol.
Os guerreiros indígenas não esperaram pelo impacto.
Tentaram escapar para as colinas — mas foram cercados, desarmados, capturados.
Não houve massacre; houve firmeza. Um fim inevitável, mas sem sangue inútil.
Quando o tiroteio cessou e o fogo começou a ser domado, Jack e Clara saíram da casa, tossindo, sujos, exaustos. Mas vivos.
Foi então que o viram.
Tahuari, o velho chefe índio, caminhando devagar ao lado do comandante da cavalaria.
Jack desceu os degraus do alpendre sem dizer palavra.
Os dois homens aproximaram-se.
E, sem cerimónia, sem ensaio, sem testemunhas, abraçaram-se.
Um abraço breve, duro, de homens que carregam o peso do mundo nos ombros.
Tahuari murmurou:
— Traí a minha raça… mas a paz era o mais importante.
Jack apertou-lhe o ombro.
— Traição seria deixar-nos morrer sem tentar evitar isto. Você salvou-nos.
Clara, com a roupa chamuscada, aproximou-se também.
Os índios revoltados foram levados sob custódia para o forte, onde seriam julgados. Não havia ódio, apenas lei. E cansaço. Muito cansaço.
Quando o sol enfim nasceu, iluminando o rancho chamuscado, as cercas partidas e o estábulo reduzido a cinzas, Jack passou o braço pelos ombros de Clara.
— Temos trabalho para meses — disse ela, suspirando.
— Temos vida. — corrigiu ele. — O resto, fazemos com as mãos.
Ao longe, Tahuari montou o cavalo e olhou-os uma última vez.
Depois partiu silenciosamente para o território indígena, levando consigo um pedaço de paz que não fora fácil conquistar.
E ali, no coração do Oeste, entre cinzas, pó e correntes de sol, o rancho Morrigan voltou a respirar.

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