terça-feira, 29 de março de 2022

NOD133. Ataque no desfiladeiro


Trazemos hoje um conto assinado por Orlando Marques que nos relata a proeza de um homem que não hesitou em enfrentar uma tribo de Creeks em guerra apesar de se encontrar numa desproporção assinalável. Era a forma de ajudar os colonos instalados em Forte Preston cercados e sistematicamente a ser dizimados pelos terríveis guerreiros.

Assinale-se ainda neste conto a preocupação do herói em não martirizar mulheres e crianças que poderiam ser vítimas colaterais da sua luta de vida ou morte.

Esta história veio publicada nos fascículos do Mundo de Aventuras 497 a 502, apresentando em determinada altura uma gafe de atribuição a Jorge Magalhães. É ilustrada por cinco desenhos de autor não identificado que aqui reproduzimos.


Grande homem foi Ben Riley!

Ainda hoje, volvidos tantos anos sobre a data da espantosa proeza que o tornou um homem falado em todos os Estados Unidos, eu recordo com admiração a sua grande aventura, a mesma que o trouxe para sempre à luz da celebridade!


Era ele então um jovem de trinta e poucos anos, dinâmico, empreendedor, mas pouco expansivo, preferindo a ação à palavra. Consorciara-se há pouco com a mais esbelta e linda rapariga de todo o território de Arizona, terra que fora dos seus pais e na qual repousavam para sempre os seus corpos que a morte ceifara.

Dizia-se então que, muito mais longe, nas férteis planícies e montanhas de Wyoming, a terra riquíssima era promissora de abundantes culturas, e clima muito saudável e que as montanhas ocultavam grandes filões de ouro.

Ali, em Arizona, a vida fazia-se com dificuldade porque a região, além de muito árida, era flagelada durante a invernia por violentas nortadas que dizimavam as culturas, criando problemas insolúveis aos proprietários das fazendas.

O pensamento de Ben Riley começou assim a voltar-se para os lados de Wyoming, que lhe davam fortes esperanças de vida próspera e feliz. Katty, a jovem esposa, que vivia só com uma tia idosa, acolheu entusiasticamente a ideia da mudança e em pouco tempo se assentou nos planos da partida.

Alguns colonos e famílias, embora em número reduzido, dispuseram-se a seguir o jovem casal e eu próprio, claro, como amigo número um de Ben, forçosamente que teria de fazer parte da comitiva, se bem que, na verdade, me fosse indiferente viver em qualquer região, desde as terras quentes e solarengas do Sul até às paragens desoladoras e gélidas da Serra Nevada.

Partimos numa manhã de sol radioso e quente. Eram ao todo cinco carros cobertos de lona, puxados a uma parelha cada um, conduzindo as mulheres e crianças e os membros mais idosos do grupo.

A pé, ladeando os carros, seguiam os colonos, de carabinas a tiracolo, atentos às possíveis surpresas do vasto itinerário que teríamos de percorrer. À frente da pequena caravana, chefiando-a, ia Ben na minha companhia.

A marcha fazia-se em andamento reduzido através das imensidões áridas e desertas que caracterizam duma maneira geral o território de Arizona. O sol, a pino, martirizava-nos com os seus ardores implacáveis, obrigando-nos com frequência a levarmos os cantis aos lábios ressequidos pelo pó, ou a desviarmos o nosso rumo, procurando as sombras das montanhas abruptas que se projetavam sobre o terreno.


Dentro dos carros, despreocupadamente, o elemento feminino e as crianças sofriam menos as torturas do calor, entregando-se, quanto possível, a umas horas de sono.

A noite acampámos nas cercanias das montanhas. Acenderam-se fogueiras para conservar a distância os animais ferozes e comemos com apetite.

Ben e Katty aproveitaram aqueles momentos para estar o mais possível juntos um do outro, já que, pela noite fora, caberia a todos os homens da caravana cumprir os seus quartos de vigília e durante a marcha incumbiam-se da tarefa de conduzir os carros, vigiando ao mesmo tempo o caminho.

À medida que nos internávamos mais para nordeste em marcha vagarosa. seguindo os planos de viagem de Ben Riley, que, a bem dizer, conhecia o Wild West quase palmo a palmo, a paisagem que nos cercava ia-se modificando e a temperatura deixava de ser menos densa e sufocante.

Tínhamos ultrapassado as fronteiras do Arizona selvático e calcinante, caminhando agora pela planície imensa entre a sombra amiga do arvoredo, que de certo modo nos compensava da canícula infernal que tínhamos antes suportado sem desalento.

Neste dia, a média horária do nosso avanço melhorou consideravelmente porque tudo se conjugava para isso: a amenidade da temperatura, a natureza do terreno quase plano e o compreensível desejo de chegarmos bem depressa à terra em que se depositavam as grandes esperanças da maioria dos viajantes.

Claro que muito território havia ainda a vencer antes de chegarmos ao nosso destino em Wyoming, mas havia que aproveitar o melhor possível o facto de termos por agora caminho franco e acessível à nossa frente, antes de voltarmos a esbarrar com novas dificuldades... de toda a espécie!

Ao cair da tarde passámos a vau um pequeno rio, o que se fez sem qualquer contratempo, mas como a noite nos surpreendeu pouco tempo depois de termos alcançado a margem oposta, Ben determinou que se montasse o acampamento provisório.

À distância, a lua refletia-se nas águas tranquilas da corrente, emanando cintilações douradas.

O céu estava límpido e a brisa era tão suave que a ramaria das árvores mal se movia. Um verdadeiro quadro de paz e beleza que os animais da floresta pareciam querer associar-se.

Preparou-se uma boa refeição a que toda a gente fez honra com visível apetite e conversou-se, amenamente em redor das fogueiras, enquanto dois ou três elementos da caravana entoavam em coro alguns trechos típicos do Oeste com acompanhamento de harmónica bocal.

À medida que o tempo passava o silêncio caia sobre o acampamento. Um a um, todos se foram retirando para os carros em busca dum sono justo e reparador.

Ben acompanhou Katty ao seu carro, mas não tardou a juntar-se comigo, próximo duma das fogueiras. Conhecia-o bem e tinha a certeza de que no seu semblante se refletia um estado de espírito não isento de preocupações.

-- Isto vai caminhando bem — disse-lhe eu para «abrir caminho» a um possível desafogo...


Ele limitou-se a dar um leve piparote no chapéu de abas largas fazendo-o descair para a nuca, mas manteve-se imperturbável. As suas pupilas ardentes fitavam as chamas crepitantes da fogueira como se pretendessem recolher das labaredas uma imagem fiel do futuro.

— Tudo na verdade muito bem até agora — concordou em reforço da minha opinião. — Contudo, ainda mal começámos...

— Alguma inquietação, Ben? — perguntei.

— Sim... muitas inquietações! A altura não terá sido a melhor para metermos ombros a uma travessia tão longa e árdua...

Fingi não compreender:

— Como assim? O Inverno já lá vai e podemos confiar na segurança do tempo, o que representa sem dúvida um grande auxílio para a nossa empresa...

Houve uma pequena pausa no nosso diálogo enquanto Ben enrolava um cigarro, sacando o tabaco duma pequena bolsa de cabedal. De repente, ele fixou-me nas pupilas quase com dureza.

—Já te lembraste dos índios? — perguntou secamente.

Tínhamos alcançado, finalmente, o ponto crucial da questão, a causa evidente das preocupações do meu jovem companheiro. intimamente dava-lhe razão —eu que tão bem conhecia a perfídia e crueldade dos índios — mas falei com calma.

— Os índios? Bem... vagamente ouvi falar neles em Arizona... num ataque em massa a Forte Preston, mesmo em pleno território de Wyoming...

— Vagamente, dizes tu? — atalhou Ben. — Pois a mim constou-me que os Creeks, na máxima força, tinham declarado guerra aberta aos brancos e invadido os territórios do Wyoming, tendo como principal objetivo Forte Preston. Dizia-se mais que a luta ali assumira aspetos verdadeiramente dramáticos em consequência da falta de recursos com que se debatiam os defensores do Forte! Todos nós sabemos que em Forte Preston, vive uma numerosa colónia de famílias, sem contar com a guarnição militar... Que se terá passado nestes últimos dias? Aqui está uma interrogação que eu devia ter posto antes de nos abalançarmos aos sérios riscos desta viagem!...

Esbocei ainda um sorriso.

— Tudo muito certo, meu amigo, mas essas notícias carecem de fundamento. Ninguém nos garantiu ainda que pesa sobre a região de- Wyoming e no Forte que a domina uma onda de ruína, desgraça e morte trazida pelos peles-vermelhas! Como homens, temos de enfrentar a realidade e caminhar em frente sem hesitação. Não nos esqueçamos de que nos guia a esperança firme dum futuro melhor! Partamos com ela nos corações, dispostos a todos os sacrifícios. E se os índios aparecerem... Não completei a frase, mas verifiquei que as minhas palavras tinham reconduzido a moral e a fé ao meu companheiro. Apertou-me a mão num gesto que traduzia toda a sua confiança e fomos ambos em busca dum merecido repouso, enquanto um dos homens da caravana ficava a cumprir o seu turno de sentinela nas imediações do nosso acampamento.

*

Quando o sol, vencendo a forte neblina da manhã, espalhou a sua luz intensa sobre a planície, há muito que tínhamos deixado o nosso refúgio da margem do rio.

Tomámos o rumo de leste e pouco nos faltava para deixarmos o terreno plano e as sombras amigas da planície, entrando finalmente nos primeiros contrafortes das Montanhas Rochosas, por onde teríamos que seguir ao longo de atalhos e de veredas escarpadas, debruçando-se sobre abismos ameaçadores.

Foi precisamente quando dávamos início à escalada dos primeiros montes, obrigando os animais a um esforço maior para arrastar os carros no terreno duro, que surgiu pela nossa frente, em sentido contrário, um cavaleiro em pleno galope.

Ao ver-nos, deixou escapar uma exclamação rouca, de contentamento.

Trazia a barba crescida e alguns leves ferimentos no rosto sulcado de fundas rugas. O trajo mal podia reconhecer-se sob as camadas de pó que o cobriam e o cavalo vinha exausto, com os olhos ardendo em fogo e as narinas dilatadas pelo esforço da galopada.

O homem devia orçar pelos sessenta anos, mas aparentava ainda um vigor extraordinário, filho decerto duma vida sã, empreendida na sua maior parte ao ar livre. Disse chamar-se Sullivan e que acabava de atravessar grande parte do território de Wyoming, em busca de reforços para o Forte Preston.

Quando nos fez esta declaração, automaticamente os meus olhos e os de Ben encontraram-se de forma sintomática.

Confirrnar-se-iam agora pela boca do recém-chegado as alarmantes notícias que já antes se propalavam em Arizona acerca do destino de Forte Preston?

Antes de entrarmos em pormenores mais amplos, tivemos de prestar a indispensável assistência ao nosso inesperado visitante.

A jovem Katty pensou-lhe as feridas da face e preparou-lhe uma boa refeição, a que ele fez honra com grande apetite.

Entretanto, todo o nosso grupo praticamente se reuniu em volta de Sullivan para se inteirar das novidades que ele trazia.

Talvez estivesse nos propósitos de Ben evitar que toda a gente se alarmasse desde já com as más notícias que iam ser reveladas, mas, por outro lado, era aconselhável a pouco e pouco ir preparando os espíritos para o que de pior pudesse surgir no dia de amanhã...

Ben cedeu ao visitante a sua bolsa de tabaco e enquanto o homem enrolava um cigarro, iniciou o interrogatório.

— Vem mesmo de Forte Preston, Sullivan?


— Parti de lá há dois dias... Atravessei as linhas dos índios, fui perseguido como um cão danado, mas consegui despistá-los! Agradeço a Deus encontrar-me milagrosamente ainda com vida!

— Tem a certeza de que os Creeks não acompanharam a sua marcha até ao último momento?

— Estou bem seguro disso! Aliás, quando tive a certeza de que já não havia um único pele-vermelha no meu encalce, procurei fazer pessoalmente alguns reconhecimentos que me habilitassem a formar um cálculo exato quanto ao número de diabos vermelhos que deixaram os seus domínios em pé de guerra! Só deste modo me será possível apresentar uma exposição clara e precisa da situação atual que se vive em Wyoming à entidade que poderá enviar reforços suficientes em socorro de Forte Preston.

— E a que conclusões chegou durante esses reconhecimentos?

— Que os índios Creeks têm pequenos grupos espalhados por todo o território, espécie de mensageiros que vigiam toda a região de ponta a ponta...

Sullivan teve uma pequena pausa e passeou a vista pelos presentes, enquanto apagava com o bico da bota a ponta do cigarro.

— Ainda bem que os encontrei neste ponto das Montanhas Rochosas! Com mais duas ou três horas de marcha vocês todos iriam cair nas garras dos índios!

Passaram-se uns breves segundos de silêncio, lapso de tempo mais que suficiente para eu verificar que nenhum dos circunstantes, nem mesmo as mulheres que escutavam o diálogo de Ben e de Sullivan, tinha a menor reação de revolta ou indignação contra o homem que os levara ao empreendimento daquela travessia numa hora de perigos graves e de terríveis ameaças! A própria Katty encarou o marido com um olhar sereno e confiante.

— E a situação em Forte Preston?

— É simplesmente angustiosa! -- declarou Sullivan. — Luta-se na proporção de um para dez. Escasseiam as munições, faltam as provisões e os Creeks cercam o Forte, lançando ataques esporádicos, mas devastadores. Toda guarnição, à qual se juntam os homens da colónia ali fixada e as próprias mulheres, combate sem tréguas, quase não dispondo duns breves segundos para matar a sede e a fome! Vive-se um drama angustioso e verdadeiramente heróico.

— Está aí concentrada a maior força dos peles-vermelhas?

— Não, de modo algum — atalhou o nosso novo companheiro. — Como disse, fiz vários reconhecimentos e cheguei à conclusão de que o grosso dos Creeks se concentra no «Desfiladeiro dos Abutres», em pleno coração das Montanhas Rochosas, um esconderijo tenebroso onde os malvados estão agrupados em pé de guerra, prontos para, à primeira voz, lançarem o assalto final que será decisivo e irresistível! Graças aos grupos de mensageiros que estão espalhados pelo território até Forte Preston, os índios sabem do que ali se vai passando e se a luta não se decidir num determinado período, certamente que partirão do «Desfiladeiro dos Abutres» os contingentes precisos para reduzirem Forte Preston a um montão de cinzas e de cadáveres...

Sullivan calou-se e nessa altura vi que os olhos de Ben me encaravam de maneira significativa. Estavam plenamente confirmados os seus receios e as notícias que se haviam espalhado em Arizona. Restava agora tornar uma decisão e a ele, como chefe do nosso pequeno grupo, competia a última palavra.

— Quais são os seus planos, Sullivan? — perguntou, voltando-se para o visitante.

— Partir sem demora para o Sul, em demanda de reforços. Permita Deus que no regresso ainda chegue a tempo de encontrar com vida todos aqueles que deixei entregues a uma cruel incerteza e a- uma angústia intraduzível!...

Vi os olhos de Ben Riley brilhar como relâmpagos. Alguma ideia extraordinária iluminara o seu espírito! O seu semblante animara-se sob o impulso duma decisão tomada de chofre... Eu conhecia-o bem e sabia que era mesmo assim... Ben era um homem de ação, que não hesitava em meter ombros a uma tarefa por mais espinhosa e ingrata que esta se lhe deparasse. E no momento em que os circunstantes comentavam a seu modo as notícias que Sullivan propalara, formulando meras hipóteses quanto ao destino que os esperava, o meu companheiro ergueu-se e disse ao visitante:

— Peço-lhe que não prolongue mais a sua viagem, Sullivan! É meu intento colaborar quanto possível na defesa das vidas que em Forte Preston sofrem presentemente horas de angústia sob a ameaça dos peles-vermelhas. Vou apresentar-lhe o meu plano e depois... mãos à obra sem perda de tempo!

Um coro de espanto soou entre os presentes. Todos se entreolharam. Katty, desta vez, encarou o marido com surpresa. O próprio Sullivan, que já se inteirara do número reduzido de homens que fazia parte da nossa comitiva não pôde deixar de carregar o sobrolho ao ouvir as palavras de Ben. Todavia, eu confiava inteiramente, antes mesmo de me certificar do plano que o meu jovem amigo decerto já mentalmente delineara...

*

No dia imediato, manhã cedo, Ben, Sullivan e eu, deixámos os nossos companheiros acomodados o melhor possível junto dos rochedos, com o fim de aguardarem o tempo que fosse preciso até ao nosso regresso.

Katty acompanhou-nos a pé durante alguns metros, despedindo-se de Ben numa colina próxima. E afastámo-nos, finalmente, deixando a sua gentil figura de mulher a seguir-nos com os olhos rasos de lágrimas de incerteza e inquietação.

Ben determinara que o nosso destino imediato fosse o «Desfiladeiro dos Abutres», nas Montanhas Rochosas, onde Sullivan assegurava que os Creeks tinham concentrado a maioria dos seus guerreiros para o ataque final a Forte Preston.

O plano que concebera e que nos fora dado a conhecer na véspera, merecera a aprovação de Sullivan, mas era duma temeridade invulgar!... Se a sorte estivesse connosco talvez viessem a ser completas as possibilidades de êxito e, por isso mesmo, nos dispusemos a arriscar tudo por tudo...

Além de armados até aos dentes e com munições em quantidade suficiente para resistirmos a qualquer ataque imprevisto, transportávamos no dorso dum dos animais uma pesada saca de dinamite e rolos de corda de maior e menor calibre que seriam empregados na execução do plano de Ben.

Sullivan foi nomeado guia do nosso pequeno grupo, dado que já conhecia o caminho mais aconselhável para nos conduzir ao ponto das montanhas sob as quais os Creeks tinham instalado a aldeia dos seus guerreiros. Pelo próprio Sullivan já sabíamos também que os pele-vermelhas não tinham levado para ali as mulheres e crianças, que sem dúvida se mantinham nos seus domínios de Oregon, aguardando o regresso dos seus irmãos de sangue.

Tal facto ajudava a tarefa de Ben Riley, pois de outro modo, o seu plano teria de ser remodelado, por não desejar que os inocentes sofressem também as consequências dum castigo severo que só deveria ser exercido sobre as hordas sanguinárias e inconscientes duma multidão de índios sedentos de fúria e destruição! O território que vencemos em marcha regular e prudente era duma grandeza esmagadora, mas os nossos espíritos, absortos em problemas mais graves, eram forçados a pôr à margem o lado turístico da viagem, para se quedarem, atentos, aos menores rumores de ordem suspeita, geralmente provocados pelo vento soprando forte nas arestas dos rochedos. Estávamos a uma altitude considerável, em plenas Montanhas Rochosas, marchando em fila indiana ao longo de veredas suspensas sobre abismos de causar arrepios e vertigens. O dorso da grande montanha avolumava-se cada vez mais à medida que nos íamos internando no território duro e áspero, onde as ferraduras dos cavalos batiam com ressonância.

O sol não era muito forte, o que em parte contribuía para que os animais sentissem menos as dificuldades que se multiplicavam a cada passo. Por fim, Sullivan teve uma exclamação, a primeira que se proferia ao cabo de algumas horas de marcha silenciosa e prudente:

— Vejam, amigos! Aquela coluna de fumo, além...

— A aldeia dos Creeks? — perguntou Ben.

— Precisamente.

De facto, na nossa dianteira, a uma distância aproximada de cinquenta metros do ponto onde seguíamos, via-se distintamente uma densa coluna de fumo elevar-se no espaço, partindo das entranhas da montanha no sítio onde esta era cortada quase a pino sobre um desfiladeiro gigantesco.

— Eis-nos no «Desfiladeiro dos Abrutes»! — comentou Sullivan.

As enormes aves de presa que davam o nome ao local pairavam aos bandos no espaço, ainda abaixo das nossas cabeças, ora adejando as longas asas em busca de novas posições, ora imobilizando-as para ficarem quase suspensas na atmosfera, em observação atenta.

— Que quer dizer aquele fumo? — perguntei eu a Sullivan, supondo tratar-se de algum sinal que os Creeks estivessem emitindo aos seus homens dispersos em grupos por toda a região até às imediações de Forte Preston.

— Nada de especial, por enquanto. Repare que a coluna de fumo sobe na vertical, obedecendo apenas aos movimentos que o vento lhe imprime. Se fossem sinais convencionados, a coluna apareceria dispersa e com intervalos regulares, correspondendo à mensagem a transmitir.

Sullivan tinha razão e a circunstância dos Creeks não terem montado sentinelas nos pontos mais altos das rochas levou o nosso Ben a precipitar os acontecimentos, tanto mais que não havia tempo a perder. Enquanto Sullivan ficava de guarda aos cavalos, eu e ele apoderámo-nos das cordas que trouxeram os e ainda da saca com dinamite e metemo-nos a caminho. Não tivemos de andar muito para alcançarmos o ponto da montanha ao longo do qual se elevava a coluna de fumo que partia das entranhas do imenso Desfiladeiro, do sítio onde os peles-vermelhas tinham instalado o seu quartel-general.

Era chegado o momento de Ben pôr em prática o seu arrojado plano! As cargas contidas na saca foram totalmente despejadas no solo.

Com o próprio tecido daquela improvisaram-se alguns pacotes carregados de explosivo, aos quais se ataram pedaços de corda impregnada de combustível, que não teriam mais de 4 metros cada um.

A corda que sobrou foi solidamente atada por uma das extremidades a uma ponta de rocha que oferecia a máxima segurança e foi suspenso da mesma que Ben desceu ao longo das paredes do desfiladeiro até onde lhe foi possível, transportando na primeira viagem dois pacotes de explosivos que introduziu nas fendas da parede rochosa, com as mechas voltadas para fora.

A operação repetiu-se ainda por duas ou três vezes até ser transportada pelo meu companheiro a última carga, ficando os pacotes localizados em pontos diferentes da rocha, mas finalmente ligados entre si nas extremidades das cordas por um sólido nó.

Por fim, lançou-se fogo a uma comprida haste de pinheiro e Ben desceu pela última vez ao abismo, a fim de completar a sua temerária façanha.

Creio bem que neste momento solene a minha respiração esteve praticamente suspensa, enquanto seguia com a vista o meu companheiro descendo pela corda, firmando-se com uma só mão, enquanto na outra erguia o archote acima da cabeça e ia apoiando os pés na rocha escalvada, para manter o equilíbrio.

Vi, então, o facho ardente aproximar-se das pontas das mechas abraçadas entre si, para logo as mesmas se desfazerem em chamas que lambiam gulosamente o combustível, acercando - se ao mesmo tempo dos diversos pontos nas fendas do desfiladeiro onde Ben introduzira as cargas de dinamite!

Mas não havia tempo para ver anais, se quiséssemos sair dali com vida ..

— Ben! Depressa! Depressa, por Deus!

Um último esforço, um último arranque ao longo da corda balouçando-se no espaço imenso e, por fim, Ben estava ao pé de mim, deixando-se cair no solo um segundo para cobrar alento. Levantou-se depois e corremos ambos desabridamente para o ponto entre as rochas onde deixáramos Sullivan.

De súbito, à nossa frente, como que aparecendo das entranhas da terra, surgiu um pele-vermelha, um Creek, de pele bronzeada, cor de barro, e uma plumagem a adornar-lhe a cabeça.

O índio andava ali por certo em missão de vigilância, mas por felicidade não obstara a que o plano de Ben se executasse totalmente como fora previsto. O pior de tudo é que o diabo vermelho aparecera justamente num momento deveras crítico para mim e para o meu companheiro, pois sabíamos que em cada segundo decorrido as mechas ardentes aproximavam-se dos alvos nas entranhas das rochas e então...

O índio ao ver-nos estacou, surpreso, deixando escapar uma exclamação de cólera. No mesmo instante, porém, com a decisão que lhe era peculiar, Ben estava junto do guerreiro e, sem dar tempo a que ele alçasse o «tomahawk» de guerra, aplicou-lhe um murro violento na face, que o fez tombar no terreno.


O índio ergueu-se sobre um joelho sacudindo a cabeça emplumada e disposto a continuar a luta, mas Ben assentou-lhe de novo o punho crispado no rosto, arremessando-o sobre o declive da colina onde se travava o combate. O guerreiro rolou pesadamente sobre a rocha tentando debalde firmar-se em qualquer ponto, mas, com um grito lancinante, acabou por desaparecer na garganta escancarada do desfiladeiro.

 Sem perda de tempo, eu e Bem continuámos a correr até alcançarmos Sullivan, que veio ao nosso encontro, soltando uma exclamação de júbilo. Foi precisamente nesse instante que uma série de formidáveis estampidos sacudiu as entranhas da montanha enorme, fazendo tremer o solo de tal maneira que eu e os meus companheiros caí-mos desamparados, enquanto os nossos cavalos, relinchando de pavor, queriam à viva força libertar-se das cordas que os detinham.

Antes os nossos olhos dilatados pela surpresa, fragmentos de rocha e nuvens de poeira eram projetados no espaço pela violência das explosões, abatendo-se depois nas profundezas do desfiladeiro, enquanto as paredes da montanha, desalojadas da sua rigidez pelos sucessivos abalos que lhes retalhavam as entranhas, se despenhavam em espantosa e infernal avalanche na boca ampla do abismo, com um ruído interminável de trovão!

Apesar da distância a que nos encontrávamos e da grande altitude que nos separava do fundo do desfiladeiro, julgámos ouvir a espaços, entre o rumor clamoroso da derrocada, um coro de gritos e de brados selvagens que lentamente se foi extinguindo, à medida que cessava a avalanche.

Entreolhamo-nos de forma significativa: o Quartel-General dos índios Creeks passara a ser um campo de morte, sepultado sob a chuva destruidora e irresistível que o atingira no fundo do desfiladeiro.

O plano de Ben Riley estava consumado com pleno êxito e as suas consequências certamente em breve se fariam sentir em Forte Preston e em toda a região de Wyoming...

Quando abandonámos o local, pairavam a grande altura sobre o «Desfiladeiro dos Abutres» bandos numerosos de aves de presa que, precipitadamente, tinham abalado dos seus refúgios nas cavidades da grande montanha.

As suas silhuetas alongadas e esguias tinham algo de sinistro enquanto iam sobrevoando lentamente o campo do morticínio.

Quando chegámos ao acampamento entre os rochedos onde deixáramos o resto da nossa comitiva, fomos recebidos com aclamações de regozijo!

Katty abraçou o marido demoradamente, esquecida já das horas de angústia que vivera durante a sua ausência.

A breve trecho, Sullivan tinha posto toda a gente ao facto da extraordinária proeza de Ben Riley e tanto bastou para que o ânimo e a confiança no futuro voltassem a pairar nos corações!

No dia imediato, recomeçámos a nossa viagem para Wyoming, desta vez acompanhados também pelo próprio Sullivan que queria certificar-se pessoalmente da debandada geral dos Creeks espalhados pelo território e do grupo mais compacto que atacava o Forte Preston.

Na verdade, o eco da carnificina do «Desfiladeiro dos Abutres», depressa se espalhou como uma mensagem de terror entre os peles-vermelhas, pondo-os em fuga imediata para os seus domínios distantes de Oregon.

Quando chegámos a Forte Preston onde os vestígios da luta encarniçada se notavam a cada passo, não descortinámos já um único pele-vermelha e o nosso grupo foi recebido em delírio por toda aquela combalida, mas heroica gente. Foi aqui que o nome de Ben Riley começou a ganhar amplitude, correndo de boca em boca, de casa em casa, de território em território. Graças a ele, desanuviaram-se os horizontes de Wyoming há tanto tempo ameaçados pela presença dos peles-vermelhas e a vida em toda a região depressa se refez numa cadência próspera e feliz.

Para mim, para o nosso grupo da pequena caravana e para o casal Riley, o jovem e feliz par que eu tanto admirava, a esperança da terra prometida breve se converteu em franca realidade...

Grandes pastagens, fartas culturas, bons negócios e uma vida sã de paz e completa harmonia! Os anos passaram, na sua marcha firme e irresistível, mas entre nós, no sempre crescente Wyoming, a vida continua a decorrer propícia e sem problemas.

E eu recordo muitas vezes com admiração a aventura vívida ao lado de Ben Riley, numa façanha que o tornou célebre entre tantos nomes célebres dos destemidos pioneiros do velho Far West!

 

 

FIM 

 

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